"Watchmen" faz-nos chafurdar no extremismo e na supremacia branca dos EUA
Promete ser a próxima grande série da HBO pós-"A Guerra dos Tronos" e, embora tenha máscaras, não é sobre super-heróis.
Depois de uma pausa em setembro para pôr a vida (e as séries) em ordem, a newsletter está de volta e com quatro convidados para compensar a ausência.
Trago-vos mais recomendações e um sneak peek daquela que promete ser a próxima grande série da HBO para os próximos meses.
Refiro-me a “Watchmen” que, além de ter a tarefa dificílima de adaptar um universo de culto da banda desenhada, é da autoria do Damon Lindelof — o homem que conseguiu criar uma obra-prima como “The Leftovers” depois daquele pedaço de cocó que foi “Lost”.
“Watchmen” estreia-se na HBO esta segunda-feira, 21 de outubro. Vamos a isso?
“Gomorra” (HBO)
👉Estávamos em 2006 quando a vida de Roberto Saviano mudou. O escritor passou grande parte da vida adulta a estudar a Camorra, a máfia italiana, e a investigação deu um livro. O sucesso foi imediato: vendeu milhares de cópias e foi traduzido para 51 línguas.
Saviano tornou-se numa celebridade e hoje vive em clausura, sob escolta policial constante e entre trocas de casa com regularidade. O livro, que inspira a série, não agradou a máfia que viu os os seus segredos, meios de funcionamento e crimes mais obscuros revelados a milhões de pessoas. Em entrevista ao “The Guardian”, descreve com têm sido os últimos anos.
“Esta vida é uma merda. É difícil descrever o quão má é. Existo dentro de quatro paredes em que a única alternativa é aparecer publicamente”, rodeado de uma dezena de guarda-costas e em perigo iminente de morte.
Só isso basta para entender aquilo que se mostra em “Gomorra”. É um retrato real, duro e violento da crueldade da máfia em Nápoles, onde a luta pelo poder e a desigualdade de classes opõe organizações que pintam as ruas com o sangue dos inocentes. Esta é para os fãs de “Os Sopranos”.
“The Affair” (Netflix)
👉É das séries mais adultas, densas e complexas atualmente em emissão, em que todas as falhas são desculpáveis quando entendemos a narrativa que quer contar. Um romancista nos seus 40 anos sente-se estagnado no casamento e na vida profissional, e isso leva-o a envolver-se com uma empregada de balcão por quem a atração é imediata e mútua.
Problema? No meio do sexo louco e do escapismo que aquela mulher lhe oferece, há um crime que marca a relação e que ambos recordam de maneira muito diferente quando confrontados pela polícia.
Chama-se a isto O Efeito Rashomon. O termo nasceu em 1950 com o filme de Akira Kurosawa, no qual uma vítima de violação, os suspeitos e as testemunhas recordam a tragédia de forma muito diferente.
Em “The Affair”, a memória é inconsistente e distorcida, a verdade não é fiável (nem importante) e os pontos de vista são histórias. Histórias que, enquanto pessoas, contamos, protagonizamos e defendemos porque são o arquétipo da nossa inocência e da nossa identidade enquanto seres civilizados. São a nossa verdade — mesmo que não seja verdadeira.
"Watchmen” (HBO)
👉A HBO pediu duas vezes a Damon Lindelof que adaptasse o livro de Alan Moore para a televisão e o argumentista recusou. Em parte porque a questão ética de reinterpretar a obra de alguém que rejeita qualquer adaptação o deixava inquieto. À terceira vez aceitou. Assim nasce esta versão de “Watchmen” que, diz Lindelof, o deixou “miserável”.
Percebe-se porquê: além de temer que Moore (que diz ser praticante de magia) lhe tenha lançado mau-olhado, tem consciência do legado do livro de banda desenhada e do quão muita gente vai odiar esta versão que não é uma adaptação.
A história passa-se em 2019 onde a ameaça não é a de uma guerra nuclear, mas sim a da força crescente da extrema-direita encarnada por um grupo de encapuçados com a máscara de Rorschach. A série faz-nos chafurdar no extremismo e na supremacia branca dos EUA que leva a que, mais do que os vigilantes, sejam os polícias a terem de cobrir os rostos com máscaras para não correrem risco de vida.
Ao contrário do que acontece no livro, aqui a ideia não é desconstruir o super-herói mas sim perceber o que acontece quando usamos uma máscara e por que razão o fazemos.
Por proteção ou por conveniência? Porque nos dá rédea livre? Vão estes polícias fazer uso da máscara para cometer uma série de crimes com a certeza de que, tal como os vigilantes do livro original, estão protegidos pelo anonimato? Parece ser esse o caminho — até porque só assim, assumido-se crítica do status quo e da política dos EUA de Donald Trump, é que faz sentido.
💡Vale a pena acompanhar. A opinião é partilhada por Manuel Reis, fundador do podcast “A Cabeça do Ned” e “Já A Seguir”, que diz que “vai ser interessante ver os próximos episódios para perceber como é que a série se vai desenrolar”, embora reforce que “a mensagem a tirar é que isto é bastante diferente do livro e que, por isso, não deve ser visto como uma adaptação.”
💡Já Pedro Miguel Coelho, ex-diretor do “Espalha-Factos”, garante: “Não há aqui heróis impolutos e a linha entre o certo e o errado parece pouco definida, com temas complicados como tensões raciais, retórica fascista e abuso de autoridade. Vai haver sangue e, tudo indica, o final não vai ser limpo.”
“Wanderlust” (Netflix)
👉Parece que só agora é que estamos a acordar para a Toni Collette e qualquer oportunidade é boa para a ver representar. E porque a vida é feita de infelizes coincidências, “Wanderlust” põe uma terapeuta, habituada a ajudar os pacientes a reconciliar-se com os seus dilemas, a braços com a possibilidade de a relação com o marido estar por um fio.
Já não há atração, o sexo é aborrecido e mecânico. Até que um acidente de bicicleta leva o casal a procurar soluções para combater a monotonia.
A solução? Uma relação aberta e poliamorosa, onde cada um tem espaço e liberdade para se envolver com quem quiser se isso significar voltar a sentir desejo, saudade e paixão um pelo outro.
Vale a pena e os seis episódios passam a correr.
“Comedians in Cars Getting Coffee” (Netflix. Sugestão de Pedro Varela)
👉“Jerry Seinfeld é um génio e este é um ponto de partida importante. “Comedians in Cars Getting Coffee” tem três características fundamentais para ser recomendada.
Em primeiro lugar, mostra o lado mais pessoa de Seinfeld — que serve como mote para as conversas com os convidados que escolhe a dedo. Depois, os carros. É curioso ver como Jerry olha para cada comediante e de que forma o associa às viaturas que conduz. Por último, permite-nos conhecer outros humoristas e perceber de que forma estão associados a Seinfeld e como inspiraram a sua carreira.
Esta última temporada conta com a participação de Eddie Murphy, Seth Rogen, Matthew Broderick e Jamie Foxx, numa série de episódios que geralmente são curtinhos e bem animados.”
“The Good Place” (Netflix. Sugestão de Guilherme Trindade)
👉“Não leiam, não ouçam e não procurem nada sobre a série. “The Good Place” põe quatro personagens muito humanas, para o bem e para o mal, a defrontar-se com a natureza filosófica dessa dualidade.
Podia cansar a metafísica, mas a pílula vem bem dourada pelas falhas dos humanos que, mesmo no paraíso, continuam a deixar-se levar pelo egoísmo e pela insegurança — que conduzem a situações hilariantes.
É um equilíbrio tão delicado que só um ensemble feito dos ingredientes perfeitos na dose certa conseguia funcionar. O humor foi o que me cativou. O coração e a preocupação com as personagens foi o que me fez ficar.”
Um obrigado especial aos convidados Pedro Varela, fundador da “Revista1906” sobre o Sporting, e ao Guilherme Trindade, escritor, realizador e criador da comédia interativa “Apaixonados” — da RTP.
Outro abraço ao Manuel Reis e ao Pedro Miguel Coelho pelos comentários sobre “Watchmen”.
Vemo-nos na próxima edição da newsletter. Qualquer dúvida ou sugestão, encontram-me pelo Twitter.
Fábio André Martins