"The Morning Show", o corporativismo do assédio sexual e como um predador se convence de que não o é
É talvez a produção televisiva mais interessante a encarar de frente e a desconstruir o movimento #MeToo. E Jennifer Aniston está incrível num registo totalmente diferente do habitual.
Quando me sentei para escrever esta newsletter, comentei que, pela primeira vez, sentia que não havia nada de novo e de surpreendente no catálogo da Netflix que merecesse destaque. Mas há cada vez mais coisas para ver. Aliás, um dia depois estreou-se “The Witcher”, aquela que promete ser a próxima grande série da plataforma.
Parece ser este o jogo da Netflix: assoberbar o utilizador com mais conteúdo (mesmo que mais de metade seja de má qualidade), apostando na ideia de que há sempre qualquer nova para ver — ao mesmo tempo que o mantém preso ao serviço com lançamentos estratégicos (“The Crown”, “Stranger Things” e, sim, “La Casa de Papel”).
É na concorrência que tenho visto um salto de qualidade gigante, mas também a maior falta de brio e de respeito pelo cliente.
Falo especificamente da HBO Portugal que, na segunda-feira, 16 de dezembro, falhou na estreia em simultâneo com os EUA (às 2 horas, em Portugal) do último episódio de “Watchmen”. Aconteceu o mesmo com todos os episódios da última temporada de “Game of Thrones”.
Às 19h23 de segunda-feira, o episódio continuava indisponível para clientes Vodafone. Pior: em nenhum momento do dia houve uma reação da plataforma que, desde que chegou a Portugal, continua com as mesmas falhas de comunicação e com os mesmos problemas técnicos.
Mas é muito bonito virem com discursos preparados de como é preciso acabar com a pirataria. Com um serviço destes em que, por 4,99€ mensais, não estão assegurados os mínimos? Difícil.
Vamos às séries deste mês.
“Modern Love” (Amazon)
Para gostar de “Modern Love” é preciso pôr o cinismo de lado e estar predisposto a ver televisão lamechas e pirosa. Mas também romântica e bonita, especialmente numa altura em que a ficção se preocupa em demasia com a hipersexualização das relações e com o dating online. A série vai no sentido oposto para se focar apenas nas histórias de amor que são diferentes a cada episódio, e cujos elementos já não se veem em televisão.
Aqui não interessam as críticas (paternalistas) a uma sociedade que se avalia através do swipe do Tinder, e muito menos que isso aconteça só para uma noite de sexo. Interessa, sim, contar como é estar apaixonado e o que significar encontrar o amor num mundo moderno. E todas as histórias são reais, publicadas na famosa coluna do “The New York Times”, que também deu um podcast.
“Modern Love” tem uma estética muito semelhante à dos filmes de Woody Allen, em que Nova Iorque, não tendo peso e destaque, serve como pano de fundo para os intervenientes e as suas histórias através de elementos estéticos da cidade (o porteiro do primeiro episódio, é um bom exemplo).
Apesar disso, é também muito irregular. Há episódios muitos bons (como o que é protagonizado por Anne Hathaway, que retrata muito bem o que é viver diariamente com depressão e bipolaridade), mas há outros mais fracos que não têm o impacto desejado.
Mas no geral, é uma série muito fofinha que não custa ver. Afinal, tem só oito episódios.
“The Morning Show” (Apple TV+)
É a grande série do serviço da Apple e também o primeiro grande papel de Jennifer Aniston pós-”Friends”, que surge num registo totalmente diferente e que seria impensável há uns anos.
Pelo contrário, Reese Witherspoon, outra das protagonistas, surge igual a tantos outros papéis que já fez — dando vida a uma mulher furacão, impulsiva e que causa o caos por onde quer que passe. Por vezes, sair da zona de conforto pode valer mais do que cingir-se ao mesmo registo.
“The Morning Show” faz lembrar “The Newsroom” só que aqui, o foco é apenas um: os bastidores de um canal televisivo, líder de audiências nos EUA, à medida que se vê a braços com um escândalo sexual pós-#MeToo depois de um dos pivôs (Steve Carell) ser despedido por assédio sexual.
E se a série arrancou meio tremida por parecer uma caricatura inverosímil do que é o meio e das pessoas que o compõem (com a personagem de Reese Witherspoon, jornalista, a agredir um manifestante sem mais nem menos durante uma reportagem, como se não soubesse que estava a ser filmada), foi ganhando tração a cada episódio.
E é talvez a mais interessante produção televisiva a encarar de frente e a desconstruir o movimento #MeToo, as relações de poder em contexto de trabalho e a forma como um predador sexual se convence de que não o é.
Um dos episódios da série é dedicado inteiramente à forma como a personagem de Steve Carell manipula, seduz e se aproveita de mulheres que, por o admirarem, se deixam levar por um convite.
O convite, claro, leva a uma cama na qual o corpo da mulher, inerte, é explorado, violado e aproveitado de forma doentia por quem não percebe os sinais. Por alguém que não entende o conceito de consentimento. Por alguém que se mantém convicto de que não é um predador e cujo corporativismo o protege e incentiva a continuar.
A temporada terminou esta sexta-feira, 20 de dezembro, e pelo meio ficaram linhas narrativas por resolver. Houve uma exposição desnecessária de personagens que nunca foi retomada, como se os argumentistas tivessem decidido à última qual o caminho que queriam que a história seguisse.
Por isso, “The Morning Show” não é uma série digna de prémios (está nomeada nos Globos de Ouro e nos SAG), nem é uma das melhores do ano. Mas entretém, é interessante e não deve ser ignorada.
“Servant” (Apple TV+)
Esta é a melhor e mais interessante produção do catálogo da Apple TV+ até agora, mesmo que esteja a ser promovida com uma pequena batota. Diz a Apple que “Servant” tem o cunho de M. Night Shyamalan quando, na verdade, é apenas um dos produtores e só realizou o primeiro episódio.
O argumento é de Tony Basgallop e tem tanto de estranho como de delicioso. Um casal aparentemente normal contrata uma babysitter para cuidar do bebé na sua ausência. Problema? O bebé não passa de um boneco que substitui a criança que morreu durante a gravidez.
O pai vive assoberbado pela experiência, mas a mulher, por se recusar a enfrentar a realidade, acredita piamente que o bebé é real. E se for?
A série é estranha o suficiente ao ponto de, com seis episódios já estreados, não perceber muito bem o que está a acontecer (embora tenha algumas teorias). A história envolve elementos sobrenaturais, religiosos e de bruxaria com uma narrativa concisa de 30 minutos fixos por episódio.
A quatro episódios do fim, as teorias nos fóruns de discussão multiplicam-se e é isto que dá vontade de seguir uma série semanal. Mesmo que sejam poucos a acompanhá-la.
“Bosch” (Amazon. Sugestão de Pedro Boucherie Mendes)
“Com cinco temporadas disponíveis na Amazon Prime Video, “Bosch” é um belo exemplo de como é possível adaptar livros numa série e acrescentar-lhe algo.
Baseado na criação de Michael Connelly, é um procedural com arcos que duram a temporada, com um excelente elenco, do protagonista Titus Welliver aos seus comparsas (destaque para Jamie Hector ou Lance Reddick de “The Wire”) e família.
É a típica série policial contemporânea passada em Los Angeles que beneficia e muito dos atores e da dimensão da personagem Harry Bosch, um agente da LAPD cheio de tormentas e falhas, filho de uma prostituta assassinada, cuja determinação carrega as histórias às costas.
Crimes, polícias, advogados, politiquices e poderosos servidos por grandes atores naquela que é a série mais longa do catálogo do serviço de streaming.”
Obrigado a todos os 1,496 subscritores que continuam desse lado. E ao Pedro Boucherie Mendes, diretor da SIC Radical e Diretor de Planeamento Estratégico do grupo Impresa, por ter aceite o convite para sugerir uma série nesta edição da newsletter.
Vemo-nos na próxima. Qualquer dúvida ou sugestão, encontram-me pelo Twitter.
Fábio Martins