"Narcos" continua a mesma novela com tiros e bigodes estranhos. Mas é a televisão que (também) queremos ver
A nova temporada tem cada vez mais personagens, mas nenhuma é verdadeiramente carismática ou interessante. E nem El Chapo safa isto, que surge como uma espécie de caricatura tosca do barão de droga.
A vida adulta ensinou-me que sou incapaz de 1) passar a ferro eficientemente; 2) estender a roupa de forma inteligente e sem precisar de mais molas do que aquelas que tenho; 3) lançar esta newsletter mensalmente de forma regular.
Pois é, amigos, sei bem que esta edição já vai com um mês de atraso.
Podemos voltar aos tempos de criança em que as únicas preocupações se limitavam a saber a programação completa do Canal Panda e tentar evitar os Bollycao com pedaços sólidos de chocolate pelo meio que faziam uma pessoa quase desmaiar de vómitos?
Não? É pena. Vamos a mais uma edição de séries fixes para ver, numa altura em que, infelizmente, não há grandes novidades nas várias plataformas de streaming que estejam a captar a atenção da malta.
“Narcos: Mexico” (Netflix)
O problema da nova temporada é a escrita que, nunca tendo sido surpreendente, continua a decair. E embora haja cada vez mais personagens, nenhuma delas é carismática ou interessante.
As personagens são fracas e não há nenhuma verdadeiramente horrível (como Escobar) ou carismática (como Peña ou Murphy) que nos prenda ao ecrã. E sem figuras marcantes, os problemas do argumento saltam à vista com momentos questionáveis e risíveis.
Pior: depois de vários anos de série, já sabemos exatamente quando vem aí aquela reviravolta “incrível”, “surpreendente” e de que “ninguém” estava à espera. É uma série sem força e já a acusar cansaço. E nem El Chapo safa isto, que aqui surge numa caricatura tosca e fraca do barão de droga.
Estruturalmente, também está mais confusa com graves problemas de edição: há cortes abruptos entre sequências que ora nos obrigam a prestar atenção à missão dos agentes, como rapidamente muda para o ponto de vista dos traficantes.
Quando retomamos os agentes, já os esquecemos porque os dilemas dos criminosos foram tão sobre-expostos que nem nos lembrávamos de que havia alguém do outro lado a tentar travá-los.
Quem gostou do que “Narcos” tem sido até agora, de certo que vai continuar a gostar. A verdade é que a série continua a mesma de sempre: uma novela com tiros, sangue, sexo, bons e maus, tiroteios, metralhadoras e bigodes estranhos. E traz o conforto que procurámos quando a ideia é ligar a televisão e desligar o cérebro ao final do dia.
O Pedro Boucherie Mendes explica melhor esta ideia no seu livro “Ainda Bem Que Ficou Desse Lado”, focado em televisão, séries e esta coisa do streaming.
“Ao contrário da melhor televisão, que estende os braços ao cinema e à literatura com a sua dramaturgia complexa, ‘Narcos’ é televisão parecida com televisão e a prova provada de que, no fim do dia, quando vemos televisão, é televisão que queremos ver.”
“The Boys” (Amazon)
A melhor série de super-heróis atualmente em emissão. Já reviraram os olhos? Boa, agora leiam isto. Os vários anos da cultura pop ensinaram-nos, entre outras coisas, ideias que hoje são tidas quase como verdades absolutas. E uma delas é que os super-heróis supostamente não matam, porque representam o sentido ético e de justiça que há em cada um de nós.
Aqui não há nada disso. Estes “heróis” que vivem enfiados em fatos de licra justa são uns autênticos filhos da p-. Matam, violam, roubam, profanam e estão-se marimbando para as consequências. Porque não as há.
“The Boys” é extremamente gráfica, adulta, explícita e muito crítica da sociedade capitalista e mediática do século XXI em que o super-herói é um produto, uma marca, que tem de se vender pela popularidade — que traz ao de cima grandes falhas de caráter seja pelo excesso de fama ou pelo narcisismo.
A subversão do conceito do super-herói em banda desenhada (a série é uma adaptação dos livros de Garth Ennis que, curiosamente, nunca gostou de super-heróis) não é nova.
Mas em televisão é uma novidade que o suposto arquétipo do bem consiga ser tão deformado e corrupto ao ponto de nos fazer questionar: “Será que a história pode ficar mais mórbida, nojenta e violenta?”.
E a resposta é que, tal como a vida, sim, pode. E fica.
“Patrick Melrose” (HBO)
Lamento, puristas do secretismo absoluto. Esta é daquelas séries em que os spoilers só enriquecem a experiência. Porque é preciso conhecer a história de “Patrick Melrose” antes de começarmos o primeiro episódio. Em primeiro lugar, é baseada em factos reais expostos numa série de livros autobiográficos de Edward St Aubyn.
Em segundo lugar, é duríssima na forma como retrata a vida de um rapaz cuja vida se tornou miserável depois dos traumas da infância — onde foi repetidamente abusado sexualmente pelo pai enquanto a mãe preferia assobiar para o lado e fingir que estava tudo bem.
Esse rapaz cresceu e, interpretado na versão adulta na série por Benedict Cumberbatch, virou-se para as drogas pesadas e para a solidão ensurdecedora em que o ponto alto dos seus dias é poder drogar-se e embebedar-se num qualquer hotel luxuoso inglês.
Cada episódio da série, são cinco, acompanha um livro do autor que conta a sua própria vida através de personagens fictícias às quais só lhes mudou o nome. Tudo o resto é real. A autodestruição, o vislumbre do abismo e o trauma da infância ao crescer numa família disfuncional foram as suas grandes lutas ao longo de vários anos.
Uma luta que, felizmente, venceu e lhe permitiu, com a ajuda da psicoterapia a partir dos 25 anos, vir a casar e ter dois filhos.
"Patrick Melrose”, da HBO, expõe essa luta sem filtros e com uma crueza que só uma série inglesa seria capaz de usar.
“Blackadder” (Sugestão de Rui Alves de Sousa)
“Vamos até outra era, em que a televisão não produzia ficção com a abundância da atualidade, mas em que havia qualidade com fartura — diria até que a chamada ‘golden age’ da televisão começou com as apostas arriscadas de produção vindas da Europa, com o drama e o humor britânico a ganharem pontos com formatos que ainda hoje não perderam o charme ou a graça.
Corria o ano de 1983, quando Portugal só tinha dois canais e o mundo mal sabia o que era isso do streaming, quando se estreou “Blackadder”, uma sitcom que se prolongaria por quatro temporadas de seis episódios cada.
Em termos muito simples, Blackadder é uma personagem mesquinha, cínica e com uma malvadez muito própria, que ambiciona chegar ao poder e contrariar o baixo estatuto a que o remeteu a sociedade.
Em cada temporada encontramo-lo num tempo e num ambiente diferente. A primeira, situada nos finais da Idade Média e que em muito satiriza as obras mais emblemáticas de Shakespeare, pode ser a menos conseguida de todas, mas tem alguns rasgos de génio que ficam à frente do melhor que hoje se faz na comédia televisiva.
Porque é que, na era do 4K, continua a valer a pena ver uma série filmada em vídeo com quase 40 anos de existência? A resposta está no quão genial é a escrita de “Blackadder”, dos seus atores, do humor intemporal e das inúmeras surpresas que nos reserva esta sitcom improvável.
Cada temporada vale pelos seus próprios motivos, e garanto que quem se aventurar nesta série encontrará um achado sem igual. E o último episódio — o da quarta temporada, esqueçamos o "regresso" feito à personagem nos anos 90 — merece estar em qualquer lista dos melhores finais de sempre da história da TV.”
Obrigado a todos os que continuam desse lado. E em especial ao Rui Alves de Sousa, cinéfilo e autor do podcast “À Beira do Abismo" (vão ouvir) por ter aceite o convite para sugerir uma série nesta edição da newsletter. Sigam-no no Facebook e no Twitter, que o rapaz sabe coisas.
Vemo-nos na próxima edição. Qualquer dúvida ou sugestão, encontram-me pelo Twitter.
Fábio Martins