"Kalifat". A melhor série que vão ver este mês está na Netflix (e não é para cardíacos)
Enquanto uma mulher tenta fugir ao Estado Islâmico, duas adolescentes querem juntar-se ao grupo. Pelo meio, um ataque terrorista que promete chocar a Suécia.
Olá.
Lançar a newsletter no dia em que há novo episódio de “Killing Eve” para ver obriga-me a um pequeno disclaimer: ainda não o vi, mas estou com pouca vontade. Embora tenha gostado da primeira temporada, sinto que a segunda acabou já em esforço e isso deixa-me pouco entusiasmado para começar a terceira.
Mas porque uma série nova não deve ser desdenhada, devem saber que o novo episódio já está na HBO Portugal. Assim como o primeiro de “Run”, a nova série com Merritt Wever de “Unbelievable”.
Estão bem? Em casa? Seguros e calmos? Espero que sim. Vamos às séries deste mês que, curiosamente, são todas da Netflix. Uau.
“Hinterland” (Netflix)
A série galesa que provavelmente não estão a ver e que acompanha os esforços de um detetive que tenta, a todo o custo, resolver casos macabros. E a aposta na série foi tal que a compra dos direitos pela BBC implicou que tivesse de ser filmada uma segunda vez em inglês.
E esse esforço transparece no rosto do protagonista que só teve direito a um dia de folga durante os 124 dias de gravações. A sua personagem, como qualquer polícia da ficção moderna, é sofrida e errante. E isso faz dele um agente perspicaz e pouco impressionante quando os cenários de crime são sangrentos.
Mas mais do que o formato de investigação criminal, são as paisagens do País de Gales que servem para dar um ambiente mais denso à história — que a cada dois ou três episódios acompanha um novo caso.
A narrativa está constantemente de mão dada com a natureza naquele que parece ser um dos pontos mais simbólicos da série: que, tal como os criminosos, também os agentes têm de ceder ao lado primário e selvagem.
“Unorthodox” (Netflix)
Deborah Feldman casou com apenas 17 anos contra a sua vontade e dois anos depois foi mãe. Em 2006, já vivia sozinha com o marido e, em 2009, fugiu com o filho, deixando para trás uma comunidade de judeus ultraortodoxos e uma série de costumes que a castravam.
A história real é a base da nova série da Netflix que foi planeada ao mais ínfimo detalhe. Para isso, contou com a ajuda de Eli Rosen, também ele criado numa comunidade hassídica, que traduziu manuscritos para que, dos cenários às rezas, tudo fosse o mais autêntico possível. A exceção foi o casamento entre os protagonistas.
É que durante a cerimónia, é usado um eufemismo na oração. Por se tratar de um elenco composto totalmente por atores judeus, e a menção do nome de Deus em vão estar proibida, Rosen quis evitar o dilema de casar os atores segundo a tradição judaica.
"Se a cena tivesse sido feita tal como um casamento verdadeiro, poder-se-ia argumentar que, ao abrigo da tradição judaica, aqueles dois estavam casados.” A realidade ultrapassa sempre a ficção. E estes quatro episódios são prova disso mesmo.
“Kalifat” (Netflix)
Há poucas séries capazes de replicar o mesmo grau de tensão que sentimos em "Homeland" quando Brody, um soldado americano radicalizado pela al-Qaeda, se prepara para se fazer explodir dentro de um edifício onde estão presentes grandes figuras do Departamento de Estado dos EUA.
Devido a uma falha muito conveniente do engenho, a bomba não detona. Mas a tensão não para. E é isso que se sente em “Kalifat” do início ao fim.
Com um elenco mais do que competente, a série usa a iminência de um ataque terrorista na Suécia pelo autoproclamado Estado Islâmico para se focar no processo de radicalização de jovens.
E enquanto uma mulher tenta fugir de Raqqa, duas adolescentes tenham juntar-se ao grupo extremista. Tudo isto enquanto uma agente tenta travar o ataque terrorista que promete abalar a Suécia.
E se dúvidas houvesse de que a arte imita a vida mais do a vida imita a arte, o criador da série explica à “Variety” de onde veio a inspiração.
"A ideia começou com uma fotografia que foi posta a circular na imprensa internacional e que mostrava três adolescentes britânicas a fugirem das suas famílias para se juntarem ao Estado Islâmico. Fiquei tão perturbado, talvez porque tenho uma filha com a mesma idade, que senti que devia escrever sobre isso.”
“Better Call Saul” (Netflix. Sugestão de André Lima Araújo)
“Fazer uma prequela não é fácil. A aproximação mais óbvia é pegar nas personagens principais e mostrar o que aconteceu até se tornarem no que conhecemos. No entanto, esta é também a aproximação mais errada. Sabendo o fim que as personagens terão, a tensão esvazia-se e as histórias são um simples colecionar de referências a eventos e personagens futuras, sem profundidade.
Como fugir disto? Faz-se uma prequela com base em personagens secundárias. Isto permite mostrar o mundo paralelo ao original que gravita em torno delas, por aprofundar e recheado de novas personagens e possibilidades. Pessoas e situações cujo destino final não conhecemos.
Ao centrar-se na vida do manhoso advogado Saul Goodman, a série liberta-se dos fantasmas de Walter White e Jesse Pinkman, podendo mudar o seu carácter (neste caso apostando tudo numa extraordinária obsessão com o detalhe e a minúcia de cada situação, enredo, personagem, cena) e transformar as nossas expectativas.
Um dos melhores exemplos é Kim Wexler, companheira de Saul e uma das personagens centrais. Sendo inexistente em ‘Breaking Bad’, sabemos que algo forte lhe vai acontecer para a afastar do advogado. Exatamente o que será, é uma das mil e uma razões para vermos a série.
Mas a este respeito, é com Saul Goodman que a série dá um golpe de génio — sabendo nós o destino que tem, os escritores oferecem-nos pequenos vislumbres da sua vida pós “Breaking Bad” em curtas (e escassas) sequências a preto e branco. Relembram-nos que apesar de estarmos a ver o passado de Saul, o seu futuro ainda está por contar.
Um amigo perguntou-me quais eram as cinco coisas mais inteligentes na televisão. Eu respondi-lhe: ‘As cinco temporadas de Better Call Saul’. Quanto mais episódios vejo, mais tenho a certeza disso.”
Obrigado a todos os que continuam desse lado. E em especial ao André Lima Araújo, ilustrador de banda desenhada e contador de histórias para a Marvel, DC Comics e outras editoras, por ter aceite o convite para falar sobre “Better Call Saul”.
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Vemo-nos na próxima edição.
Fábio Martins